Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Lorpa

Lorpa

Terças com o Amílcar Soluções

O Amílcar é um barrigudo de 43 anos. Vive entre a casa da sua mãe viúva e os biscates que faz na região, alturas em que costuma alugar um quarto barato ou dividir residências temporárias com colegas do trabalho. A barriga deve-a, segundo ele, à cerveja que bebe. Toma como ofensa quando lhe dizem que talvez se deva às duas bifanas diárias inundadas de maionese, consumidas em jeito de ceia. Os dentes que faltam já de forma notória "devem-se aos fracos genes, obviamente".

O maço de cigarros tornou-se uma necessidade que nem sempre chega para um dia inteiro, sobretudo depois da separação com a namorada de longa data, com a qual nunca chegou a procriar. A mãe sente-se triste por não ter um neto, mas habituou-se a deixar escapar a esperança. Em suma, o Amílcar é usualmente tomado pelos conterrâneos como o fracasso em pessoa.

 

Ainda que não seja um grande falador, os finais de tarde ou noites em que bebe umas cervejas a mais no café, costumam transformar-se em verdadeiras conversas de nível quase filosófico. Foi num desses momentos que lhe apontaram a alcunha de Amílcar Soluções, e desde aí passou a ter sempre uma resposta resolutória para tudo. É verdade que tende a aplicar demasiados advérbios de modo, 95% das vezes desnecessários, mas isso compensa a capacidade conselheira perante qualquer problemática.

Falei com o Amílcar ontem e propus-lhe uma parceria com o blogue, ficando os termos da parceria em segredo profissional. Pelo menos até que o Amílcar calhe a falar dela quando estiver com os copos. Ele não me consegiu prometer histórias todas as semanas, nem eu esperava que assim fosse. Mas o nosso acordo obriga a que haja pelo menos uma por mês. Com sorte, teremos o Amílcar por aqui com regularidade.

Nas palavras do Soluções: «Normalmente, ao fim de semana perguntam-me mais regularmente. Pensam que eu estou bêbado, mas eu estou mas é a merda. Se não fosse aqui o Amílcar é que eu queria ver. Eu costumo ter dor de cabeça usualmente ao domingo e à segunda. À segunda para perto da noite já costumo estar melhor, essa altura é boa para te contar alguma história. Efectivamente».

 

Fica então aqui o primeiro relato, tiro o meu chapéu ao homem, chamem-lhe fracassado chamem:

Eu cheguei ao café precisamente meia hora antes da Selecção começar. Estava um alarido do cara***, mas ouvi logo a voz do Simão destacada no meio das outras. Ele é surdo de uma orelha, nunca sei da qual. Pedi uma [cerveja] média ao cachopo do Zé dos Tanques [rapaz que costuma fazer horas ocasionais de serviço ao balcão], ele disse-me logo que já tinham perguntado por mim. «Isso sei eu!». Falamos de muita coisa até começar o jogo, e foi nesse bocado que o Marmeladas me disse que cada vez que ouvia falar do madeirense mais famoso do mundo, lembrava-se da Madeira e de uma passagem de ano em que lá esteve. «Foi o subsídio de Natal mais bem gasto da minha vida, ó Amílcar. Se não tivesse as dívidas que tenho, voltava lá».

Surgiu-me imediatamente a ideia. «Ó porra, tu estiveste lá quando, mesmo? (...) Em noventa e poucos? Ó homem, então mas isso é canja. Nessa altura o Ronaldo estava precisamente por lá, queres melhor? Telefonas para algum jornal ou revista e dizes que tens uma história bombástica do Cristiano Ronaldo e da família durante os anos 90, efectivamente. Depois, telefonas às pessoas da zona com uma proposta para ganharem dinheiro fácil, não há-de ser difícil até algum aceitar. Explicas que tudo o que têm de fazer é, quando determinado meio ligar, dizerem que a família do Ronaldo passou efectivamente o ano com eles nessa data, mas que não se lembram de ter acontecido nada de especial, além das habituais bebedeiras.

Ora, evidentemente que isso vai despertar a revista a querer saber mais coisas da tua versão. Nessa altura, dizes que és uma pessoa humilde e que apenas queres voltar a passar o ano na Madeira, que não queres estar a ganhar dinheiro da tristeza dos outros. Além disso, estar no local e reconhecer os sítios ajuda a avivar a memória. Finalmente, dizes que só contas tudo se a entrevista for lá, se não quiserem, que não te voltem a telefonar. O que vai acontecer é que, perto da passagem de ano, eles vão lembrar-se disso e vão telefonar-te com a oferta.

Quando lá chegares só tens que fazer isto: beber até teres que ir levar soro para o hospital e, preferencialmente, bateres com a cabeça nalgum lado antes de ser levado pela ambulância. Quando alguém da revista for saber de ti e perguntar pela história, é só fingires que mal sabes onde estás e que nem te lembras de alguma vez teres falado com aquela pessoa na vida. Assunto encerrado, preciosamente.».

O Amílcar perguntou-me se era isto que queria. Eu disse-lhe que servia muito bem e que sempre que encontrasse soluções do género me viesse contar. Que o nosso acordo continuava.

Mantive as palavras tal e qual ele mas disse, apenas tratei de trabalhar o texto de forma a respeitar mais as frases ditadas. Além disso, fiquei a achar que as soluções do Amílcar não eram, afinal, pura parvoíce. Talvez tenha sido só esta, logo veremos.

 

 

Nota de rodapé: Qualquer semelhança que as personagens ou histórias destes textos fictícios possam ter com a realidade, é mera coincidência.

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.