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Lorpa

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Amílcar Soluções - Os Nomes

Se ainda não sabem quem é o Amílcar, podem fazê-lo aqui. Se não, quem perdem são vocês. Ou não! Três frases em que usei a palavra "não". É só negatividade aqui, mas lembrem-se que negativo com negativo, dá positivo.

Adiante!

 

Partilhei mais tempos de conversa com ele durante os últimos dias, que nos restantes anos da minha vida. Tudo por causa das festas populares aqui da terra, como já vos tinha falado.

O Amílcar trabalhou até quarta feira, dia de São Pedro e dia em que a festarola (em honra do dito Santo) começou. A partir daí, e apesar de ter trabalhos combinados com o Simão, não "esteve para isso" porque "festa é festa e já não tínhamos isto há 3 anos".

O velho Simão, de 50 e tantos anos que mais parecem 70 e tantos, tem uma carpintaria. Ou melhor, uma divisão da casa que faz a vez de carpintaria. Tem também uma vida de perdas, com expoente na filha enterrada ainda no ventre de uma mãe afogada. Quando fala do assunto, há palavras para a filha que nunca viu e nunca para a mulher que lha levou. É surdo de um ouvido, e também eu não percebo de qual porque não há posições da cabeça que assim o indiquem. Se o sei, é pela necessidade de lhe repetirem as falas ou do volume elevado das mesmas. Dele próprio, inclusive.

Entre ele e o Amílcar parece haver uma relação que mistura uma irmandade picada de inveja, com um respeito paterno simbiótico.

 

Falo-vos do velhote porque esta história não vem na voz do Amílcar. Ou melhor, vem, mas vem também na voz do Simão. Foi uma conversa a que assisti entre ambos. Falavam como se eu não estivesse lá. O Simão encostado e o Amílcar firme, com o hábito irritante de deixar um cigarro esquecido no canto da boca, quer enquanto falava, quer quando dava goles à cerveja. Achei incrível que só agisse como se houvesse ali um cigarro quando lhe caíam blocos de cinza na camisa branca, esticada pela barriga. 

 

- ... ó Simão, se eu te estou a dizer é porque é verdade porra! - repetia o Amílcar, desta vez mais alto.

- Tu achas-te mais esperto que os outros, Amílcar. Queres fazer pouco das pessoas, mas ainda não percebeste que essa merda do Soluções é mais a gozar que outra coisa.

- Eu não tenho é culpa que não saibas ler. Nem dessa teimosia de velho. Precisamente porque ninguém sabe estas coisas, amanhã mostro-te isso. Deixei o telemóvel em casa a carregar a bateria. Se não, ias já acreditar facilmente em mim.

Tudo havia começado quando o Amílcar, já bem aviado de cerveja, lançou ao velho em tom zombeteiro um «e o teu nome significar "aquele que ouve". Certamente que é Deus na brincadeira contigo, surdo que nem uma porta como és». O Simão, também já com o seu copito, reagiu mal à lembrança de quando o Amílcar chegou ao café com o significado de meia dúzia de nomes, rabiscados num guardanapo pouco branco.

- E digo-te mais, o filho da cigana sabia o que dizia. Eu já pesquisei verdadeiramente na internet e é mesmo verdade. - continuou o Soluções.

- O Marmeladas diz que a internet estragou a vida das pessoas. - cortou o Simão.

- O Marmelo diz isso porque é carteiro. Olha que merda! - o volume veio mais baixo agora, quase um lamento para ele próprio. O Simão não há-de ter sequer ouvido. Depressa voltou ao tom normal. - Tu queres saber o que realmente tenho pensado para sermos todos melhores pessoas?

- Tu andas é a pensar muito. Vê lá se o pensamento te faz pensar que amanhã é dia de trabalho, calhava bem.

- Tu ouve isto, Simão. Os nomes e as palavras têm significados, as pessoas levantam as orelhas para uns e abrem a boca ofendidas para outros. Se eu agora aqui disser "salada de tomate", é normal porque olha, precisamente há saladas de tomate aí pelas mesas e são palavras normais. Mas se eu disser "os tomates e o cara***" já é outra história. Já se levantam orelhas como se fossem as do meu cão. Agora pensa nisto: as pessoas deviam ir saber imediatamente os significados dos nomes. Imediatamente. Porque assim dava para descobrirem coisas delas. E provavelmente boas. Isto resolvia os problemas de muita gente, naquelas alturas em que uma pessoa tem dúvidas disto ou daquilo. Ias ter com algum bruxo ou procuravas na internet ou sei lá. Olha eu por exemplo, quando aquele ciganito me disse que o meu nome lhe fazia lembrar um relâmpago, fiquei com aquilo na cabeça amarguradamente. Duas noites depois, vim dormir a casa e começou a trovejar. Já sabes que a velha tem um medo dos relâmpagos que se pela. Fui dormir para o pé dela e ficou descansada a noite inteira. Falem-me de coincidências que conto-lhe logo esta história. Coincidências e é uma merda! As pessoas deviam saber mais dos nomes e se precisamente até nem gostassem do que descobriam, mudavam o nome e pronto. Havias de ver, mudavam logo como pessoas também, estou-te a dizer ó Simão. Era assunto encerrado, preciosamente.

 

O velho Simão não disse mais nada, o Amílcar cuspiu a beata já apagada do cigarro. Eu disse-lhe «Tens porras, ó Amílcar», e ele respondeu-me que se quisesse escrever alguma coisa esta semana, que escrevesse sobre isto. Que sabia bem que eu tinha estado a ouvir tudo com atenção. Também, com a meia dúzia de pessoas que ali estavam àquela hora, já depois da música ter parado e, com o tom de vozes mais levantado do que é hábito, ficava difícil não ouvir.

Às vezes fico com a impressão de que o Amílcar sabe mais do que aquilo que diz, já noutras ocasiões ganhava mais em ficar calado. Juro que continuo sem saber o que pensar dele. Mas não costumam dizer que quem mais jura, mais mente?

 

 

Nota de rodapé: Qualquer semelhança que as personagens ou histórias destes textos fictícios possam ter com a realidade, é mera coincidência.

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