Quando um livro dá comichão
E aquela sensação de, durante uma leitura, sentirmos que nos abriram os olhos para determinado assunto? De que "agora faz sentido, agora percebo".
Essa comichão invadiu-me, inquietou-me mais do que esperava. Culpas para 1984, de George Orwell.
Tenho pensado se deveria ou não escrever sobre o livro e o motivo é simples: não ser capaz de transmitir o que quero. Ficar áquem do que a leitura me passou. Mas depois lembrei-me que se conseguisse passar ideias assim "tão facilmente", em vez de escrever num blogue pessoal como este, seria um escritor altamente famoso e consagrado. Pelo menos!
Bom, voltando à comichão. Mil novecentos e oitenta e quatro pretende, nas palavras do autor, ser uma sátira da sociedade e do rumo que se estava a tomar. Orwell disse também: Escrevo porque há uma mentira qualquer que quero denunciar, um facto qualquer para o qual quero chamar a atenção, e a minha preocupação inicial é ser ouvido.
A história conta um futuro cerca de 40 anos após o período em que o livro foi escrito. Um futuro controlador, opressor e, principalmente, manipulador. Que divide o mundo em três potências dominadoras, a população em três classes com direitos desiguais. Um futuro onde até a língua foi reinventada de forma a que qualquer réstia de revolta que pudesse surgir, nem tão pouco seja pensável. Onde o Ministério da Paz trata da Guerra. E por aqui me fico. A coçar as ideias.
E porquê tanto prurido? Porque ler um livro publicado em 1949 e conseguir ver o nosso mundo contemporâneo, desorienta-me. Ver demasiado do nosso mundo de agora, mas ali. Tantas semelhanças perturbadoras.
Uma dessas passagens:
As estatísticas mostravam-se tão fantasiosas na verão original como na versão rectificada. A maior parte das vezes, o que se esperava de um funcionário como Winston residia pura e simplesmente em que as inventasse. Por exemplo, o Ministério da Riqueza estimara em cento e quarenta e cinco milhões de pares a produção de botas para o trimestre. A produção real estava avaliada em sessenta e dois milhões. Winston, no entanto, ao reescrever a previsão, reduziu este número para cinquenta e sete milhões, de forma a dar substância à habitual afirmação de que as quotas tinham sido utrapassadas. Fosse como fosse, os sessenta e dois milhões não se aproximavam mais da verdade do que os cinquenta e sete ou do que os cento e quarenta e cinco. Muito provavelmente, nem se tinham produzido botas nenhumas. Mais provavelmente ainda, ninguém saberia quantas teriam sido produzidas, nem ninguém queria saber. Sabia-se apenas que todos os trimestres se produziam, no papel, numeros astronómicos de botas, enquanto uma boa metade da população da Oceânia andava descalça. E o mesmo sucedia com todas as categorias de factos noticiados, grandes ou pequenos. Tudo se esfumava num mundo de sombras em que até a data do ano em curso era incerta.
Fico a matutar: Será que o único conceito importado do livro foi o do Big Brother (reality show)? Parece-me que os "donos do mundo", aqueles 1% dos principais 1%, que brincam a ser Deus sem permissão, vieram aqui buscar umas ideias. E isso é desconcertante. Dá comichão.
E desse lado, já alguém leu 1984?
Que livro recordam por ter-vos causado este tipo de incómodo?