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Lorpa

Lorpa

Ser adulto: a base

Se só agora chegaram, talvez seja melhor espreitarem este texto primeiro. Também deveríamos usar fio dentário diariamente e, ao fim de contas, as caixas andam meses pela casa de banho. Conselhos que valem o que valem.

Adiante.

 

Num tempo tecnicamente não tão longínquo assim, eu fui criança. Criança no sentido puramente ingénuo da palavra, querendo com isso dizer nas duas idades (física e mental).

Durante essa porção do meu tempo cronológico, ínfima fatia universal, apresentaram-me o mundo. E eu, como cada um de vocês, conheci-o tal e qual os meus sentidos mostraram. As crianças não tentam conhecer, não tentam fazer. Não tentam simplesmente. Ou conhecem, ou não conhecem, ou fazem, ou não fazem. Não há cá tentativas. Tentativas são armadilhas para adultos.

Esta é a frase que pretendo isolar: tentativas são armadilhas para adultos.

 

Vivemos numa época próspera e abundante. Em tudo. Para o bem e para o mal. E de toda esta fartura, surge uma ideia comum e universalmente aceite: a de que o que importa é ser feliz. Pego nesta ideia por ser a mais usual, todos nós sonhamos com esse estado utópico da felicidade. O que é que fazemos, então?

 

Tentamos ser felizes. Claro está!

 

Reforço o "tentamos". Nós, adultos, tentamos imenso, não é? Tentamos estar com os amigos, tentamos não chegar atrasados, tentamos ir visitar o avô ao hospital, tentamos fazer desporto três vezes por semana, tentamos ler um livro por mês, tentamos comer de forma mais saudável, tentamos ajudar os outros, enfim... tentamos dar o nosso melhor, certo?

Quando um comentador desportivo diz que "foi quase golo", o meu pai usa uma expressão bastante curiosa como resposta: "quase golo... então mas como é que é um quase golo?". Mais ou menos como a velha adivinha do meio buraco. Ou é buraco ou não é, não existe meio buraco. Com a história do golo acontece o mesmo, ou é golo ou não é. Não existe um quase golo.

Transporto isto para as tentativas que fazemos diariamente. Tentamos tanto... Porque é que não fazemos, simplesmente? Porque é que não somos, e pronto? Talvez o "tentar" nos sirva como a almofada protectora de que tanto gostamos. De ter uma desculpa. O "eu tentei, pelo menos".

 

Há uma frase que guardei comigo e da qual me lembro regularmente:

Take your life in your hands and what happens? A terrible thing: no one to blame. - Erica Jong.

Uma possível tradução será algo como "Tomas o controlo sobre a tua vida e o que acontece? Uma coisa terrível: ninguém para culpares."

 

Creio portanto que uma das características que nos carimba como adultos é este medo generalizado. Não precisa sequer ser um medo consciente, pode estar escondido e manifestar-se de outras formas. Erguemos muros (teoricamente) invisíveis a isolar o nosso mini mundo, ocultamos sentimentos e plastificamos outros. Sorrimos de forma mecânica mas bem alargada, não vá acontecer não darem conta do branqueamento dentário. Tudo isto para tentarmos ser felizes, claro.

Associa-se a "idade dos porquês" às crianças, fase em que são capazes de fazer centenas de perguntas por dia. "Porque é que os aviões voam?", "Porque é que a avó tem o cabelo branco?", "Porque é que os cães não sabem falar?". Enfim, tudo aquilo que lhes suscita dúvida, perguntam. E eu pergunto:

 

Porque é que perdemos essa capacidade?

 

Não sei. Mas quantas vezes aconteceu não termos percebido uma explicação de um colega ou de um professor e, quando nos perguntam se percebemos, dizemos que sim. Medo? Vergonha? Orgulho? Não sei. O que eu temo é que a "idade dos porquês" afinal dure toda uma vida e nós estejamos a oprimi-la, só porque agora  somos adultos.

 

Diz-se também regularmente algo como "O adulto criativo é a criança que sobreviveu". Toda a gente sabe que "a criança que sobreviveu" é o Harry Potter. Em todo o caso, a expressão tem a sua lógica. A de que é necessário mantermos em nós uma parte infantil, uma abordagem mais ingénua.

A base da idade adulta será sempre o que vivemos e tudo aquilo que nos trouxe até aqui. Seria bom que não o esquecêssemos. Que tentássemos menos. Ou vamos continuar enrolados neste embuste de ser adulto.

 

boy

 

No próximo texto vou pegar nos comentários do post anterior. E nos deste também. Portanto continuem com os vossos bitaites acerca da vida adulta. O que é, afinal, esta coisa de ser adulto?

Obrigado a todos e bom fim de semana!

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2 comentários

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    Torcato 13.01.2017 17:44

    Fico contente que tenhas gostado, Sónia :)
    E que bela adenda, essa! Eu diria que comigo aconteceu exactamente o oposto, ou seja, fui criado com a ideia de que existem muitos limites, regras a cumprir e de que os pés foram feitos para contactar constantemente com a terra. Nada de grandes vôos.
    É estranho, mas ler isso consegue entristecer-me de certa maneira. Na minha cabeça, e se algum dia tiver filhos, é essa a ideia que quero passar-lhes: de que não existem limites e que têm controlo total sobre a própria vida e destino. Na medida em que são eles quem escolhe, obviamente que existirão sempre factores incontroláveis.
    Quando um dia estiveres no "mood" e se achares por bem, escreve algo no teu cantinho sobre essa questão dos sonhos e da utopia. Fiquei curioso e gostava muito de ouvir mais sobre isso. Principalmente por teres a noção do tal momento exacto, isso é incrível!
    (E se eu me estiver a esticar e a pedir de mais, é só puxares do middle finger que eu compreendo) :)


    Bom fim de semana!
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